BORDERLINE
ALCEU BETT
No fundo das aparências * Por Muriel Paraboni
Não é difícil relacionar as obras fotográficas, e sobretudo o processo intuitivo de Alceu Bett, à pintura informal, ainda que por caminhos nada óbvios. Como nada óbvia é também sua trajetória, tendo por anos fotografado espetáculos de dança no Brasil e na Europa, chegando a acompanhar a lendária companhia Wuppertal, de Pina Bausch. É a partir desse lugar insuspeito que o artista visual e cineasta pôde exercitar a ciência do movimento e da expressão, apreendendo as sutilezas do corpo (o do artista e o do objeto diante da câmera) que instaura no tempo e no espaço a potência estética da imagem. Era de esperar, portanto, tendo dado inúmeras provas fílmicas e fotográficas de seu flerte progressivo com o subjetivo, com o psicológico e com o abstrato, que em algum momento Alceu optasse de fato pela renúncia total da figura. E no instante em que o faz, tal como na abstração lírica de pintores como Hans Hartung e Antoni Tápies, concebe imagens que, despojadas de seu referencial externo de origem, sustentam-se por si mesmas na estrutura dinâmica das cores e das camadas, das dissoluções, dos resíduos e dos acidentes químicos de um processo experimental de afluências musicais, com ressonâncias tanto da dança como da pintura. "BORDERLINE" estabelece um marco significativo na trajetória do artista ao recolocar a autoria na pauta da fotografia contemporânea. Nos sucessivos gestos que atentam para dissolução da imagem, o que se inscreve nas obras é nada menos que a essência expressiva do meio. Ao submergir fotografias figurativas em compostos químicos, experimentando todo o tipo de recurso, da decantação ao gotejamento, da raspagem à inscrição crua de um gesto, dialoga vividamente com Pollock em suas deambulações rituais em torno da tela estentida no chão, origem de seus famosos drippings. O desejo que move os artistas é de natureza semelhante: dança ou ritual que através do corpo religa o ser à sua essência. Ou o meio à sua potência. Para Alceu Bett a imagem fotográfica é menos uma concepção do tempo, de fixar um instante qualquer, do que do movimento, a imagem como expressão bruta de estados anímicos, em plena transmutação. A analogia que vai da matéria física ao plano das sedimentações psicológicas é sem dúvida apropriada: a abstração como processo de mergulho nas profundezas do ser, resultando na emergência poética da reminiscência e da projeção, como quer Jodorowsky, referência cara ao artista. O resultado não são meras fotografias abstratas, como se poderia supor, mas imagens líricas em pleno movimento, em passagem indeterminada pela dança e pela pintura, entre os vestígios da figura e sua recomposição orgânica na imanência profusa das formas. Por consequência, imagens que já não podem (porque já não querem) representar a aparência externa do mundo, em sua busca flagrante pelo que está mais ao fundo, mais próximo de quem olha, a natureza fenomênica (e poética) da realidade talvez. Paradoxalmente, ao mirar o que está além desvela o que nos é mais íntimo, tornando subitamente visível o complexo movimento das forças que nos consubstanciam. A fotografia vibra como realidade ela mesma, não aceitando do olhar menos que o envolvimento, o mesmo jogo subjetivo que a origina. Alceu Bett trai assim a previsibilidade da imagem técnica, usando da gestualidade e da intuição para neutralizar o excesso de controle inerente à tecnologia. Em outras palavras, como sonhava Benjamin, transcende a rigidez do dispositivo, fazendo a máquina trabalhar para si. E ensaia em sua dança um reencontro oportuno com a liberdade da arte informal, agitando com vigor a superfície da fotografia.
* Muriel Paraboni é cineasta e artista visual, mestre em Poéticas Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).